quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Diários não expurgados: Tempos de voragem


Marc Chagall - The Fiddler (1913)

Diego está na minha urina, na minha boca, no meu coração, na minha loucura, no meu sono, nas paisagens, na comida, no metal, na doença, na imaginação. (Frida Kahlo sobre Diego Rivera)

Depois de mais uma madrugada em claro, repouso os olhos vagos e marcados sobre a aquarela de telhados musgosos que quase não vejo através da vidraça suja desse quarto de pensão. As cores da cidade escorrem, não tenho sono, estou toda acrílica, intensa, sem esperar por promessas transcendentes - talvez enviem água ou cinzeiros por baixo da porta. Resta agora esse mormaço sufocante, a garrafa de conhaque barato desocupada, alguns trocados no criado mudo e o ronronar pequenino da chuva fina abafada pelos roncos de motor. Assim tem sido o intervalo entre nossos encontros, quando ele me invade e me envolve com sua dança ferina e em seguida se debruça sobre mim com a fé e suavidade de uma criança. Sem cerrar os olhos. Ele é tudo que sorve, subverte, consome. Estamos sondando nossos abismos.  A necessidade de rompimento com toda forma de compreensão e sensatez me é transferida mediante sua febre. Incandescência! Ruína!  Tempos de vertigem e voragem.  deus, como me sinto estilhaçada - e viva! Atrás daquela porta, outro universo orgástico a ser desbravado, entretanto, agora todas as setas apontam para dentro. Estou toda in. Quero um filho, ele me dara um filho. As lembranças de um outro tempro se tornam cada vez mais turvas e esguias - serei leal a elas à minha maneira. Não visto mais a minha pele, internamente novas paisagens irrompem, meu corpo se dilata.  O mundo acha que perdi o juízo. Penso num trecho dum poema do Drummond:

"Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu."

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