quinta-feira, 27 de junho de 2013

Urtigas na minha mente: "un camino entre cantidades de caminos"




                                                                                                  à sorte

Olá, América. Escrevo para dizer que os clarões se apagaram, a luz do sol está trancada junto à janela cheia de graça, esperando para retomar os teus olhos, amém!  Vejo agora essa estranha cicatriz junto ao teu peito baldio, estou vestindo aquela camisola azul em desprezo à tua voz oculta na convulsão da chuva que silencia a minha verdade. E estou acariciando a eternidade sabendo que em breve você cairá também...
A última vez em que te vi você tinha 27 anos e teus olhos eram heróis exaustos, pousados sobre a fumaça moderna, e tua solidão mirava o céu, espreitando a primavera. Penso em todas as vezes em que morremos ancoradas às infâncias dos bêbados e não posso deixar de perguntar... Você estava preparada para isso?

Ainda penso naquelas canções jorrando num universo místico, no homem velho com os olhos acinzentados pousados sobre o horizonte intemporal que desapareceu tão rapidamente... Sempre imaginei que seria doloroso caminhar na direção oposta aos meus desejos e enlaçar o desconhecido, encontrar o vazio, me desprender do próprio corpo... Bem, talvez tenha sido, Jack, mas eu gostaria de poder contar sobre como é estar imersa agora em devaneios calmos, respirando o silêncio e a desintegração dos sentidos - e acreditando finalmente que posso pertencer a algum lugar. Tenho me lembrado constantemente de dom Juan: Tudo é um caminho entre um milhão de caminhos. [...]e todos os caminhos são os mesmos: não conduzem a lugar algum, mas alguns caminhos tem coração e outros não. 



Interlúdio:



Nossa bagagem maltratada fora empilhada na calçada novamente; nós tínhamos mais caminhos para percorrer. Mas não importa, a estrada é a vida. (Kerouac)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Intervalos





...a garoa fina pairando sobre a garota fina que dobra as esquinas corroídas pelo tempo e se arrasta pelas galerias, carregando o peso de todas as ausências. Na sala ao lado alguém grita ao telefone e em seguida desliza para o quarto e se dissolve em vales rubros de dor e decepção. O desejo desatado veste apenas a aurora que empalideceu na estrada de terra úmida enquanto o homem grande carrega o caixote, onde se sentará ao alcance da música hindu. Penso então em nós dois deitados nus, sagrados & esquizofrênicos e não posso deixar de perguntar, meu amor, em que lugar longínquo enjaulamos nosso coração selvagem naqueles dias de iluminuras e bancas de jornais? [...] e te amo como se ama um passarinho morto.(Manuel Bandeira)


Interlúdio: 

Revolvendo os versos que esquecemos na chuva. O perfume doce misturado com o álcool, os olhos úmidos e vermelhos demais. Continuávamos a evitar qualquer tipo concessão: nada de rimas por aqui! “Pensei que poderíamos dividir a mesma garrafa agora”. Entreguei muito daquela segurança em troca de liberdade, e o que sobrou? O caos, nós dois aqui sentados com as calças frouxas sobre blocos de excentricidades sem saber exatamente o que fazer com tudo isso. Cacos. Apanhou as malas sorrindo como um louco jogador de cartas “Você é uma bêbada e eu te amo”. Bateu a porta.

domingo, 21 de agosto de 2011

Doces e sujos


                                                                                         Para o Dean

...e movimentando agressivamente os punhos ele buscava a minha boca, a minha lembrança, a minha mentira. Seus gestos interrogavam meus personagens maltrapilhos que caminhavam feito hipsters do outro lado do corredor. A roupa velha no varal, os vagões desocupados, o caminho de volta, livros e poemas esparramados pelo assoalho cheio de buracos. Duas noites em claro falando sobre a esquerda, evocando Sartre. Jazz, ele dizia, sempre acabamos aqui, para inferno todo o resto. Se levantava, acendia mais um cigarro e preciso dormir agora, vem Marília, dar uma olhada na cara envergonhada do mundo e continuava sem se recompor, você já deveria ter percebido que estamos parados em frente a casa de ninguém. Faróis imensos em cima de nós e aqueles olhos fatigados me chamando de volta, pedindo para que fizesse amor suavemente, que sentisse e aceitasse sua situação, que ouvíssemos o saxofonista arruinado, que nos arruinássemos, que encostássemos a cabeça naquela cicatriz de cesariana mal feita e dormíssemos até o final da tarde sobre a cortina de veludo roubada. Estiquei os braços e anunciei a chegada...


Perambulamos até um ponto qualquer, falávamos sobre gatos ou sobre jazz. Velhinhos a espreita da eternidade em seus alpendres, sentados em degraus de madeira ao lado de jovens moças russas. Era o tempo, nunca obstinado, prostrado num canto qualquer, sempre prestes a deitar ao nosso alcance. Prefiro não olhar. Jack falava comigo em voz baixa, me convidava, os ônibus passavam e Irene, diante da janela aberta, esbofeteava o travesseiro e despedia a culpa. E nós prosseguíamos, doces e sujos.


Interlúdio:

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Outra ''briga de amor com o mundo''




Fim de tarde. Domingo de cansaços e lágrimas de viúva. Uma paleta jogada no asfalto embaixo da chuva. Misturar, borrar, escorrer imprecisa. Cantar sozinha, derramar sozinha, tantas ruas nos meus olhos, poesia fluida, texto sem cerimônia. Carrego feixes de lenha através das manhãs incultas, insisto em compartilhar essa cama estreita, peço perdão por te acordar de repente com a graça de um sorriso que só faz fugir. Delírios, barricadas, versos que não me aceitam. Uma desgarrada, eles pensam.  Penso em você que perdeu todas as apostas para sempre, meu capricho. Eu era moça nua nos teus olhos, e você menino nas minhas cirandas de vanguarda. Benvindo, benvindo, benvindo.
É que odeio a fatalidade do alvorecer, cicatrizes no rosto do tempo, é que o sentido mais profundo da espiritualidade repousa na sexualidade, e eu preciso buscar. Gritos, saltos e leões. Parece maluquice, mais fácil se me entupisse de gozo raquítico, eu sei, herdar o cheiro das boas maneiras vestidas e calçadas, mas não, rebento para ti, vasto mundo, e esbravejo: tenta-me.   


Interlúdio:
                                                                                                 
                                                                                                     Por Carl Solomon

Vida é Gary Cooper combatendo Árabes em seu uniforme da Legião Estrangeira.
Vida é ler Kierkegaard em 1948 na biblioteca da Rua 42.
Vida é andar entre os anos cinquenta e os anos sessenta.
Vida é mãe, tias, primos e a lembrança do pai.
Vida é enumerar os suicídios e as psicoses deste e daquele.
Vida é ter raiva, raiva daqueles reais ou imaginários que se tornaram ricos e bem-sucedidos e sumiram deixando você mergulhado em seu desespero.
Vida é a velha fachada, boa para os anos cinquenta mas que não serve mais, sempre sorrindo e aparentando felicidade, ignorando todos os estados entre a felicidade e o desespero.
Vida é analisar verbos e escovar os dentes.
Vida é jogar Monopólio, Scrabble, Tênis, Pingue-pongue e tomar novos rumos.
Acima de tudo, vida é engano, quando os esquecidos retornam, quando você encontra velhos amores e novos ódios e eles se mesclam e se confundem numa trama que nunca percebemos por inteiro, de que desconhecemos os motivos fundamentais.

domingo, 31 de julho de 2011

Meia noite em Paris

Mulher na Janela - Salvador Dalí

Déjame por un instante, sumergirme en la locura de los artistas. Olvidar las reglas que impone el hombre para no transgredir todo aquello que conocemos. No le temo a la aventura de vivir en un mundo surrealista porque mi espíritu, no conoce otra verdad que la me eleva hasta las fronteras de lo imposible. El día que deje de soñar, mándame flores blancas. (Salvador Dalí)


Ontem Jack me contou sobre um tempo em que eu era prostituta e irmã. Escrevíamos a vida espontaneamente, tudo era vivo e fluído como o jazz e os estudantes se observavam construindo adágios de amor para que finalmente os pensamentos se esparramassem partidos através das praças e libertassem o infinito. E nós nos aventurávamos para além das trincheiras e dançávamos apenas - mundanos, boêmios, vadios. Com as pernas e os caminhos e os desejos intrincados. Dois serafins entusiasmados com as cidades antigas, experimentando carícias corruptas e escolhendo sonetos secretos na estação. As mentiras desabavam sobre nós como num maravilhoso delírio quixotesco. Jack questionou se não seria essa a hora de me desvencilhar destes moinhos.
- Continuo lutando, Jack, continuo lutando. E eles são gigantes. E nós somos loucos – ou poetas.


Interlúdio:


sexta-feira, 22 de julho de 2011

Niente


Te amo como as begônias tarântulas amam seus congêneres, como as serpentes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras, a cruz na testa lerdas prenhes, dessa agudez que me rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade. Hilda Hilst

Interlúdio:

terça-feira, 19 de julho de 2011

Niente

O poeta é ao mesmo tempo um leão e um Atlântico. Um nos afoga e o outro nos rói. Se sobrevivemos aos dentes, sucumbimos nas ondas. Um homem que pode destruir ilusões é, ao mesmo tempo, fera e dilúvio. As ilusões são para a alma o que a atmosfera é para a terra. Retirai esse brando ar e a planta morre, a cor empalidece. A terra por onde caminhamos é um ardente rescaldo. É marga o que pisamos, e seixos de fogo queimam os nossos pés. Somos desfeitos pela verdade. A vida é um sonho. É o despertar que nos mata. Quem nos rouba os sonhos rouba-nos a vida. (Virginia Woolf)


Interlúdio:

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Obrigada por isso

Rimbaud por Picasso

Sejam frágeis demais ou muito vagos, os laços que unem pessoas que se encontram por acaso num hotel à meia-noite possuem uma vantagem, pelo menos, em relação aos laços que unem os mais velhos, que, uma vez juntos, têm de viver junto a vida inteira. Podem ser frágeis, mas são vivos e genuínos, meramente porque o poder de rompê-los está ao alcance de todos, e não há motivo para continuar, exceto um verdadeiro desejo de que continuem. Quando duas pessoas estão casadas há anos, parecem tornar-se inconscientes da presença corporal uma da outra, de modo que se movem como se estivessem sozinhas, falam alto coisas que não esperam resposta, e em geral parecem experimentar todo o conforto do isolamento sem a solidão. (Virginia Woolf)

Gosto quando palavras estrangeiras me esclarecem, conferindo forma à desordem dos instintos e ao medo desarticulado que é sussurrado em silêncio atrás das venezianas. Penso em tudo que nasce em mim constantemente, em coisas que se misturam e se atropelam e cuja aparência permanece velada diante da inexistência de um esboço. Talvez seja um corpo o que obsessivamente tenho buscado na literatura - na palavra lapidada do outro, que me relata ou me desfigura. Virginia, obrigada por isso.


Interlúdio:



domingo, 17 de julho de 2011

A música do meu casamento

The crystal ship is being filled.
A thousand girls. A thousand thrills.
A million ways to spend your time.
When we get back,
I'll drop a line.
(The Crystal Ship - The Doors)


Jack, eu gostaria de escrever sobre teus pés tão presos à terra, mas estou escondida no meio dia reluzente de um verso sonhado, incapaz de ultrapassar a soleira de pedra das nossas memórias. E então o que me sobra de você são apenas relances. Noite passada você mencionou a infidelidade que cantamos e choramos tanto, mas nós sabemos, embora não o suficiente para aniquilar a dor e o medo que vieram depois, que eu tentei ser a mãe, a mulher e o porto. A verdade é que nos encontramos estrangeiros, com a alma rasgada e todas as cortinas descerradas, desfiando um tempo escorregadio que corria descalço através dos vinhedos. Talvez um dia te reconheça caminhando envelhecido pelas alamedas em busca de um desejo tranqüilo, consolando uma utopia bonita que verse sobre pátria, canteiros, lagos e estradinhas mortas pintadas de azul. E nesse dia talvez eu seja teu hino ou tua cortina tecida à mão. Mas não agora, porque a loucura e o sol ainda jorram em mim. E foi o com vestido desabotoado e a imaginação envenenada do mundo que eu me casei um dia...Oh, tell me where your freedom lies. The streets are fields that never die. Deliver me from reasons why, wou'd rather cry. I'd rather fly...

sábado, 16 de julho de 2011

Niente

Na manhã seguinte, quando tomou da pena para escrever, ou não podia pensar em nada, e a pena fazia sucessivos e lacrimejantes borrões, ou, o que era ainda mais alarmante, perdia-se em melífluas divagações sobre a morte precoce e a corrupção, o que era pior do que não pensar em nada. Pois, segundo parece – e o seu caso o prova -, não escrevemos só com os dedos, mas com a pessoa inteira. O nervo que governa a pena enrola-se em cada fibra do nosso ser, amarra-nos o coração, atravessa-nos o fígado. (Virginia Woolf)