terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Os sintomas da ausência


Castores constroem suas represas, me disse hoje Rubem Alves, atentando para o  silêncio com que no universo dos animais os ensinamentos se perpetuam, alforriados de vocábulos e sábios. Sua natureza petrificada, encerrada em si mesma e perfeita é incompatível com as experiências de liberdade e originalidade. No entanto, diante do homem e de sua inerente recusa em refletir o passado a fim de tornar-se um artífice de mundos, a genética silencia. Templos, harpas, poemas, tambores, sepultura para os mortos. A falta, a dor da ausência, o suicídio que coloca em cheque o imperativo de sobrevivência. Para o autor, a cultura só é possível no momento em que o corpo cala.
Rubem ressalta ainda que muito embora a tradição filosófica tenha tentado perpetuar a certeza de que somos seres racionais, a cultura sugere uma outra possibilidade: o homem é um ser de desejo. Este emerge enquanto sintoma da insuficiência, da escassez, da ausência. “A saudade só aparece na distancia. A fome só passa a existir quando o homem é privado do pão. O desejo pertence aos seres que se sentem despojados, que não encontram prazer naquilo que o espaço e o tempo lhes oferecem”. Estudos realizados por psicanalistas indicam que a cultura resulta do imperativo humano de cunhar os objetos que deseja, nosso ego tentaria inconscientemente encontrar um mundo em que fosse amado, porém, diante da impotência em localizá-lo, cria tais objetos de amor por intermédio da imaginação e da magia. “Juntam-se assim o amor, o desejo, a imaginação, as mãos e os símbolos para criar um mundo que faça sentido”.
Segundo o autor, cantamos e celebramos esse desejo ainda desencontrado da realidade em preces, rituais, poemas, oferendas. “Onde a cultura fracassa surgem os símbolos, testemunhas das coisas ainda ausentes, saudade do que não nasceu”. É neste terreno que emerge a religião: “a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza”. Camus notou que são parcos os casos de homens que se sacrificam em nome de verdades cientificas, em função da sua frieza e inércia. Do lado oposto estão os símbolos que nos fazem pestanejar, estremecer, estigma da comunhão do homem com o sagrado. Um mundo de imaginação e fantasia, que se debruça sobre o invisível e sobre fatos que ultrapassam nossas experiências prosaicas – na linguagem zen budista seria algo equivalente ao satori: um terceiro olho se abre e diante da iluminação e passa a vislumbrar coisas que os demais não podem contemplar. “O amor se dirige para coisas que ainda não nasceram, ausentes. Vive do desejo e da espera”.
Num mundo que esbraveja a necessidade da subordinação irrestrita à observação, a entrega à embriaguez dos desejos se torna inconcebível.  “Os símbolos respondem a um outro tipo de necessidade, tão poderosa quanto à do sexo e da fome: a necessidade de viver num mundo que faça sentido”. Camus levanta a seriedade que permeia a questão filosófica do suicídio, uma vez que esse diz respeito ao sentido - ou ausência do mesmo, da existência. Questões que encontram serias limitações quando inseridas na esfera puramente material. Pois, é inegável, trata-se de um problema simbólico. “A trágica conclusão das salas de tortura diz respeito ao fato de não ser a dor que desintegra a personalidade, mas a dissolução dos esquemas de sentido”.

Inspirado em: ALVES, Rubem. “Símbolos da Ausência”. In: O que é religião. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. 14ª edição.

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