quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

me encolhi numa febre deserta

, então ele enterrou a cabeça nos meus seios e pensei bye bye blackbird em breve você estará  prostrado diante de edifícios e arranha céus respirando a fuligem dos automóveis e terá que arquitetar estrelas e luas  e inventar um diálogo com os astros  e uma certa ternura um abraçar a si mesmo em meio à multidão que se amontoa e depois segue dispersa e explode em solidão sem castelo sem espada sem glória  mas tudo bem eu suspirava aliviada nos olhos dele cabem todos os sóis casamos quatro ou cinco vezes nas duas últimas semanas nosso altar eram garrafas de vinho que esvaziávamos pelas madrugadas estávamos quase sempre bêbados e obscecados e colorindo versos surdos depois eu seguia distante pisando no cascalho assoviando sem som melodias quebradas no ar e quando o dia despontava  nos encontrávamos em estado de pureza sóbrios e terrenos eu pensava puta merda cadê toda aquela excitação mas ele beijava a mancha borrada no meu pescoço e sorria infantil rasgando toda desesperança e isso me fazia pensar que loucura a mesma dificuldade em erotizar a perfeição e todas aquelas frases que ainda não foram lapidadas latejando na memória mesmo sabendo que ele partiria logo fizemos amor pouquíssimas vezes fizemos amor o tempo todo falávamos e cantávamos sem parar as vezes sobre rostos e memórias carcomidas pelo tempo enquanto nos lembrávamos de um tempo futuro onde o desejo sexual viraria poeira fina e mansa e lenta e eu tentava imaginar a erosão e a carne gasta  e não eu não me chateava a gente não se lamentava eu sorria por dentro por perceber que continuaríamos sendo o objeto de referência do outro temos tantas eternidades e fulingens em comum pousadas em claves de sol benditas sejam tuas ideias socialistas malucas não me arrependo de ter deixado tudo  a antítese do amor é a ferocidade que surge do ciúme patológico de hera e não quero mais o eterno conflito entre agressividade e dedicação quero paz e silêncios e camisolas vermelhas e repouso nos braços do amor ah ele é bastante magro e músico em busca do endereço perdido em todos os lugares está descobrindo o tesão de por os pés na estrada  não ligo ele não faz por dinheiro vaidade ou glória as vezes sai vestido de azul tão leve tão pouco com sua flanela xadrez a mesma daquela tarde quente na varanda da minha casa não sei como onde quando teremos nossos filhos ele gosta de Beatriz faz questão de escolher o nome da menina pela primeira vez eu não me importo cerro os olhos e permito que isso escorra devo estar arrebatada por um sentimento que desconheço e cortinas tecidas a mão não quero controlar nada fomos postos para fora a ilusão de todo casamento é a crença de que aquele será o objeto final de nossa escolha sublimar talvez diga respeito a encontrar motivos para ficarmos juntos algo parecido com descobrir onde colocar o outro dentro do nosso desejo não sei  por alguma razão eu acredito na gente ele disse que faria qualquer coisa por mim jamais pediria para ele ficar eu quis tanto subir naquele ônibus ontem e inventar outra vida em albergues desconhecidos naquela cidade cinza e insone acreditando bobamente que seria meu último espasmo mas sabemos que não e isso não importa  importa o sangue e a carne e a imaginação ele saiu tão lindo tão vasto tão homem com o barbante que amarramos nos dedos até sempre blackbird nos dissemos várias vezes e as locomotivas amarelas atravessavam os telhados num último relance ontem transamos tão insanos e agonizantes ouvindo miles davis confessamos nossa espera revirada choramos aliviados agradecemos as brechas porque agora zeus não precisará mais se transformar em várias coisas só em chuva para conquistar e fecundar danae chova sua seiva em minha ciranda esquiva e lenta meu amor eu dizia sem fazer alarde pouse teus últimos anos nessa  janela sem grades  somos a extensão de algum filme do woody concluímos nos encarando através do espelho do banheiro sabe aquele comecinho de igual a tudo na vida isso a cena dos dois casais no restaurante e depois a loja de discos e a billie holiday esquece o desfecho trágico dizem que toda relação é narcisista que buscamos no outro a beleza que não temos não acredito nisso não mais a energia criativa emerge da necessidade do outro uma vontade sem vértice de fazer o que ele não me pediu por descaso ou bondade largar tudo aqui e passar a vida quebrando copos tomando vinho barato cantando aquele choro bandido:

(transcrição do último espasmo)

Interlúdio:

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