segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O Grito

Sebastião Salgado

Assombrado pela necessidade e pela fome, Akhtar Muhammad primeiro vendeu alguns de seus animais. Aí, enquanto os meses iam passando, trocou os tapetes da família, os utensílios de metal e até mesmo as toras de madeira que sustentavam o teto da cabana que o abriga com a larga prole.
Mas o dinheiro não dava. A fome sempre reaparecia. Finalmente, seis semanas atrás, Muhammad fez algo que se tornou infelizmente digno de nota no país. Ele levou 2 de seus 10 filhos para o bazar da cidade mais próxima e os trocou por sacos de trigo

(BARRY BEARAK, Pai afegão vende filhos para comprar comida. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 de março de 2002; transcrito do The New York Times.)

Questionado, o pai confessou sentir saudades de seus filhos, mas lamentou não existir alternativa diante da incapacidade de alimentá-los. Para saciar a fome as pessoas se desfazem de tudo: utensílios, animais, filhos... A noticia é antiga, no entanto, alude a uma realidade que, longe de ser discreta, desfila seus modos rasgados vestidos de despudor: enquanto alguns vivem na mais exacerbada regalia, outros morrem de fome devido às situações subumanas a que são submetidos. Em Capitalismo, Violência e Terrorismo, Octavio Ianni atenta para a necessidade de reconhecermos a relação entre as situações de carência e violência. Tema banalizado, mas atualíssimo.
O autor concebe a sociedade burguesa enquanto uma fabrica onde são processadas pessoas, concepções de vida e modos de ser, mas também revoltas, terrorismo e revolução. As guerras sociais são latentes e permanentes. A distribuição díspar da riqueza econômica e cultural é a força motriz dos enxames de violência com os quais os meios de comunicação nos bombardeiam diariamente. As elites governantes e as classes dominantes até se empenham em equacionar, desde que seja mantida a ordem social, econômica e política.
Elvira Lobato, num artigo publicado na Folha de São Paulo datado de 2002 e intitulado “O Brasil vive guerra social”, vale-se de uma comparação feita por um relator da ONU sobre o direito à alimentação, que nos remete a uma reflexão interessante: em alguns paises africanos a fome é sintoma da escassez inerente à própria natureza onde não se vislumbra nada além de areia e rocha. No Brasil, um terço da população é açoitada pela subnutrição, e isso é inadmissível quando nos deparamos com terra fértil, riqueza material e clima tropical. No nosso caso, a fome não é uma fatalidade, responsabilidade da natureza austera, mas alvitre de uma ordem social essencial e completamente injusta: um genocídio. “Quem morre de fome no Brasil é assassinado. Há uma guerra de classes: são 40 mil assassinatos por ano, de acordo com as estatísticas do Ministério da Justiça. Há uma guerra social aqui. Para a ONU, 15 mil mortos por ano são um indicador de guerra”. E são dessas desigualdades que se nutrem as mais variadas formas de intolerância, entre elas as xenofobias, os etnicismos e racismos.
Entre as causas, o autor destaca o ciclo da globalização do capitalismo, responsável por colocar economia nacional prostrada diante da econômica global, gerando assim um vácuo entre Estado e sociedade civil, a qual se encontra apartada da capacidade de gerir as políticas governamentais, situação que Ianni chama de “despolitização das questões cruciais da vida do individuo”. No âmbito do divorcio entre indivíduo e Estado, o último se volta quase prioritariamente para decisões externas, negligenciando a sociedade civil a fim de conformar-se com os aparelhos das elites dominantes. Panorama esse que fomenta, entre outras coisas, um declínio nas relações com o outro e consigo, acentuando ainda mais o individualismo e a solidão. Para essas elites a sociedade nacional é apreendida enquanto mero espaço de negociações e transações. E assim, assistimos e vivenciamos diariamente, a diminuição do ser humano ao estatuto de coisa.

Inspirado em: IANNI, Octavio. Capitalismo, violência e terrorismo. São Paulo: Civilização Brasileira, 2004.

Interlúdio:

Edvard Munch - O Grito (1893)



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