domingo, 13 de março de 2011

Quebra de protocolo: Mas é carnaval...

Di Cavalcanti - Carnaval (1954)

não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr,
Deixa o dia raiar que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for, seja o que Deus quiser!
Seja você quem for, seja o que Deus quiser!
(Chico Buarque)


O ritual é um dos artifícios de exposição e legitimação do poder e também o que impede a  sociedade de viver a mercê da desorientação. Em O que faz o brasil, Brasil? Roberto Damatta aborda questões referentes à dicotomia que perfaz a nossa identidade nacional. Em um dos capítulos versa sobre aquilo a que intitulou ritos de reforço e de inversão, onde explora os atributos característicos de certos momentos solenes, entre os quais se enquadra o Carnaval, esse apreendido enquanto festividade que estimula a igualdade e a abolição de fronteiras, cuja manutenção é glorificada em eventos cívicos e religiosos.
Segundo o autor, os ritos de reforço caracterizam-se por celebrarem as relações sociais de maneira idêntica a que são articuladas diariamente, reafirmando assim as dissonâncias e a permanência da hierarquia. O corpo e os gestos são trabalhados com ênfase na neutralidade e censura a fim de exteriorizar o respeito. Roberto lança mão do exemplo de igrejas e locais sagrados onde “as coisas são ordenadas de maneira vertical e o comportamento marcado pela contrição’’ e também de comemorações militares, cuja leitura social é facultada através da cartilha do Estado. “Nas festas de ordem, a ênfase é sempre colocada na regularidade, na repetição, na marcha ordeira, no cântico cadenciado, no controle do corpo que remete a idéia de sacrifício e disciplina, esses dois ingredientes básicos da promessa.” Os holofotes repousam sobre as autoridades identificadas, entre outras coisas, com deus e a pátria. Desse modo, as dissonâncias existentes na sociedade hierarquizada são mantidas e, em alguns casos, ampliadas inviabilizando assim a confusão de papéis entre o povo e  as autoridades.
Do lado oposto estão os ritos de inversão apreendidos por Damatta enquanto “uma viagem da rotina para o extraordinário”. O carnaval, nesse contexto, seria a apoteose, catástrofe onde a vida, agora despojada de fardos e castigos, esbanja impunemente o excesso e os prazeres sensuais. Paralelamente à quebra de protocolo viabilizada pela destruição de fronteiras e hierarquias, há a disseminação da possibilidade de igualdade e união.  Assistimos em êxtase as desarrumações sociais intensas, ainda que efêmeras. O povo abandona os bastidores e assume o papel de protagonista nessa “solenidade profana ligada ao poder e vontade dos homens que promove a fragmentação e descentralização do mundo.” O cotidiano é assolado pela dança coletiva, música e rostos pintados e a singularidade, antes condenada, recebe abrigo.
Perante o povo brasileiro educado através do estigma da divisão e ênfase na hierarquia, a festividade carnavalesca é o convite temporário à liberdade, invenção, mobilidade, alegria e igualdade. Já cantava sabiamente Chico Buarque em tempos de repressão: e um dia afinal tinham o direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava Carnaval, o Carnaval, o Carnaval...


Interlúdio:

Talvez nudez, talvez serpentinas, nosso pequeno carnaval exilado no des-esperar.

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