sexta-feira, 29 de abril de 2011

Nascita di Venere

The Birth of Venus - Sandro Botticelli

Tú eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube que ias comigo,
até que as tuas raízes atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.
                                                                                                                                  [Pablo Neruda]

Com olhos inocentes e longas calças desgastadas ontem ele me contou sobre os espaços abertos e as cordas partidas do seu bandolim com a doçura de quem toca canções de ninar. Eu fugi para sacada, nua e traída pela desonestidade de todos aqueles recortes de jornais e revoluções sem lágrimas. Por esse coração baldio que por tanto tempo tentou silenciar a música que carrego no ventre. Mas ele veio. Ele a mãe. Ele o universo. Ele a eternidade. Ele a promessa. Ele o ancião. E de repente eu tinha flores brancas no cabelo e a música e todas as primaveras intocadas coroadas com o esquecimento. E ele amou a minha serenidade e a minha ausência derradeira com os olhos inocentes e longas calças desgastadas.


Interlúdio:

Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome. [Caio Fernando Abreu]

Nenhum comentário:

Postar um comentário