terça-feira, 29 de março de 2011

Celtic Music




Interlúdio:

É que eu preciso mesmo partir em busca da minha Morgana.

Não é silêncio. É um mistério que está no ar, misturado com este perfume de sândalo que sai da madeira que se contorce e chia nas chamas (...) há também o discreto murmurar das palavras que se dizem ao ouvido, e o choro da separação. [Rubem Alves]

sábado, 26 de março de 2011

Apelo



Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores

Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.

[Hilda Hist]

Interlúdio: 

E nasceram crianças remotas e tristes, enlaçadas à linguagem dos enganos dos bemóis e das lágrimas que vertem nas ruas a nudez sem sonhos. Mas ainda há tempo, meu amor, para atravancar a caminhada desinteressada e flores e olhos cintilantes e corpos ásperos e trêmulos revolvendo a madrugada. Colocar a vida em ordem outra vez.

domingo, 20 de março de 2011

Dylan, cachorro engarrafado e nós

Depois de rever I'm Not There com meu garoto e chegar à conclusão que temos que mudar de lugar mais uma vez: One more cup of coffee for the road, one more cup of coffee for I go, to the valley below...

sábado, 19 de março de 2011

''e logo voce está beijando uma cabeça cheia de rolinhos.''



                                         ao som de Ysabel's Table Dance do Charles Mingus

eu arrombaria Hilda e talvez dissesse  ama-me, é tempo ainda, sorrindo como uma louca vendedora de jornais em baixo do sol. Do lado de fora, uma vida de excentricidades e outras mulheres que não podem prometer nada. Morremos, morremos, morremos. E desembarcamos com os lábios vermelhos e os olhos manchados e dobramos esquinas de encontros e danos, ama-me, embora eu te pareça demasiado intensa porque, você sabe, estão todos bêbados e respiram com dificuldade. E as dores e preces do mundo deslizando para dentro de mim, arranhando oceanos de espuma e glórias que não são nossas... sou tua esposa e doce concubina e de asperezas, e transitória, se tu me pensas. E essa fome e esse querer e não querer estar aqui enterrados na minha carne, aquela mesma necessidade de ir embora, você sabe do que estou falando, Ginsberg saberia, a dose violenta de qualquer coisa, interroga-me e eu te direi que nosso tempo é agora, não pergunte o que aconteceu, foi tudo tumultuado e estranho, um par de versos rasgados e vestidos de renda e saxofones gemendo tristemente em leitos de ninguém porque é mais vasto o sonho que elabora.


Interlúdio:

há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?


[Charles Bukowski]

terça-feira, 15 de março de 2011

Epigrama

                                                                             por Cecília Meireles

Narciso, foste caluniado pelos homens,
por teres deixado cair, uma tarde, na água incolor,
a desfeita grinalda vermelha do teu sorriso.

Narciso, eu sei que não sorrias para o teu vulto, dentro da onda:
sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que sonhava
gerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso,

a estátua de cristal que, sobre a tarde, a contemplava,
florindo para sempre, com o seu efêmero sorriso...

segunda-feira, 14 de março de 2011

Por uma outra Globalização


Sebastião Salgado

É preciso explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico e que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e das insurreições, e eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro. (Jean Paul Sartre, 1963, Prefácio de Os Condenados da Terra de Frantz Fanon.)

Um conceito novo para um processo antigo. A globalização despontou com as Grandes Navegações e se acelerou após a Segunda Guerra Mundial, quando empresas oriundas de paises desenvolvidos invadiram o resto do mundo a fim de aumentar seu mercado de consumo e, além do desemprego conjuntural, trouxeram consigo o desemprego estrutural e tecnológico.
Parece reducionista apreendê-la enquanto fator essencialmente econômico quando atentamos para sua dimensão social, política e cultural. Existe um padrão de vida e consumo que é exportado mundialmente como indicativo de felicidade, ao passo que, com o processo de homogeneização da cultura se esvaem as particularidades de cada nação. Ora, um dos projetos da modernidade não seria exatamente lesar a identidade?
Fato é, vivemos a globalização perversa: a globalização do desemprego, do crime, do tráfico, da pobreza. Para Milton Santos uma forma de reação está na cultura, mais especificamente na identidade cultural, capaz de fazer frente à massificação. O geógrafo propõe que nos posicionemos contra o consumismo e usemos essa base técnica criada para circulação do capital para veicular valores humanos. Em outros termos: deve-se trabalhar por uma globalização solidária, menos individualista e que possibilite encontrar uma identidade com o outro, ou a única coisa global será o que se consome.

domingo, 13 de março de 2011

Quebra de protocolo: Mas é carnaval...

Di Cavalcanti - Carnaval (1954)

não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr,
Deixa o dia raiar que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for, seja o que Deus quiser!
Seja você quem for, seja o que Deus quiser!
(Chico Buarque)


O ritual é um dos artifícios de exposição e legitimação do poder e também o que impede a  sociedade de viver a mercê da desorientação. Em O que faz o brasil, Brasil? Roberto Damatta aborda questões referentes à dicotomia que perfaz a nossa identidade nacional. Em um dos capítulos versa sobre aquilo a que intitulou ritos de reforço e de inversão, onde explora os atributos característicos de certos momentos solenes, entre os quais se enquadra o Carnaval, esse apreendido enquanto festividade que estimula a igualdade e a abolição de fronteiras, cuja manutenção é glorificada em eventos cívicos e religiosos.
Segundo o autor, os ritos de reforço caracterizam-se por celebrarem as relações sociais de maneira idêntica a que são articuladas diariamente, reafirmando assim as dissonâncias e a permanência da hierarquia. O corpo e os gestos são trabalhados com ênfase na neutralidade e censura a fim de exteriorizar o respeito. Roberto lança mão do exemplo de igrejas e locais sagrados onde “as coisas são ordenadas de maneira vertical e o comportamento marcado pela contrição’’ e também de comemorações militares, cuja leitura social é facultada através da cartilha do Estado. “Nas festas de ordem, a ênfase é sempre colocada na regularidade, na repetição, na marcha ordeira, no cântico cadenciado, no controle do corpo que remete a idéia de sacrifício e disciplina, esses dois ingredientes básicos da promessa.” Os holofotes repousam sobre as autoridades identificadas, entre outras coisas, com deus e a pátria. Desse modo, as dissonâncias existentes na sociedade hierarquizada são mantidas e, em alguns casos, ampliadas inviabilizando assim a confusão de papéis entre o povo e  as autoridades.
Do lado oposto estão os ritos de inversão apreendidos por Damatta enquanto “uma viagem da rotina para o extraordinário”. O carnaval, nesse contexto, seria a apoteose, catástrofe onde a vida, agora despojada de fardos e castigos, esbanja impunemente o excesso e os prazeres sensuais. Paralelamente à quebra de protocolo viabilizada pela destruição de fronteiras e hierarquias, há a disseminação da possibilidade de igualdade e união.  Assistimos em êxtase as desarrumações sociais intensas, ainda que efêmeras. O povo abandona os bastidores e assume o papel de protagonista nessa “solenidade profana ligada ao poder e vontade dos homens que promove a fragmentação e descentralização do mundo.” O cotidiano é assolado pela dança coletiva, música e rostos pintados e a singularidade, antes condenada, recebe abrigo.
Perante o povo brasileiro educado através do estigma da divisão e ênfase na hierarquia, a festividade carnavalesca é o convite temporário à liberdade, invenção, mobilidade, alegria e igualdade. Já cantava sabiamente Chico Buarque em tempos de repressão: e um dia afinal tinham o direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava Carnaval, o Carnaval, o Carnaval...


Interlúdio:

Talvez nudez, talvez serpentinas, nosso pequeno carnaval exilado no des-esperar.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Insultos & labaredas

                                              
é que você rasgou a riacho certo, garoto, e eu jorrei sem medida e agora estou aqui sonhando novamente com o sagrado: nossas flores e filhos e o som do teu bandolim ao entardecer em algum rancho nas minas gerais - talvez existir não me doa tanto. Penso nos corpos rígidos e trêmulos estirados na maré de alguma madrugada inculta e pálida, e meus pelos se eriçam e meu ventre se enche de mel. Labaredas. Mas não me peça para ter calma, não agora, o vazio me atormenta, a existência me atormenta. Apenas mereça meu silêncio e minha recusa em amanhecer e meus vícios & versos abarrotados de ausência e abandono e vontades impraticáveis. Quero conhecer também teu mundo que ninguém pisou, imagino que seja errado e assimétrico, moldura obsoleta se insinuando para desconhecidos. Poesia inacabada, crispação, amenidades que adiamos.

para sempre tua,
Marília