Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Acendo outro cigarro, lábios adocicados, olho para a luva descosturada junto à janela, investigo contornos de ausências amontoadas na paisagem de papel e te imagino caminhando sobre pedras gastas e tateando o fogo. Não anoiteça nunca. Apanho o cinzeiro, coloco um disco de música hindu e visto rendas brancas, água limpa, desejo raso. Apoio o rosto sobre uma das mãos, permito que a cidade atravesse o quarto, miséria arremessada contra parede, mormaço. Dedo indicador bate as cinzas, recolho uns trocados, preciso encontrar meu pai, gestos empoeirados, fuligens esquecidas sobre ataduras, gemido do sax. A menina branca de meia soquete a dobrar a esquina, já faz muitos anos, insultos de verniz, a velha puta, o espaço pequeno, o hiato entre nós e os outros. Uivo.
Interlúdio:
...play a song for me,
I'm not sleepy and there is no place I'm going to.
Hey! Mr. Tambourine Man, play a song for me
In the jingle jungle morning I'll come followin' you.
Magoamo-nos um ao outro sem sentido e as farpas permanecerão quando formos para a cama. É como estar deitada numa cama de pregos. (Marianne)
Tarde de julho em algum canto de 2008. Encontrei o exemplar escrito de Cenasde um Casamento num sebo amarelo da São Sebastião. Ir ter com Bergman sempre foi um ato de coragem, talvez por ser o diretor com quem eu mais me corresponda emocionalmente: incomunicabilidade, morte, culpa. Personagens deprimidos se contorcendo em cenários nebulosos que os hostilizam. Alguns meses depois eu disse sim. No drama em questão o diretor sueco aborda os (des)caminhos das experiências conjugais, o amor é reconstituído de maneira trágica à medida que assistimos a desintegração psicológica das personagens, furtando a esperança de qualquer anseio romântico numa relação a dois. Há a construção de tipos emocionalmente leigos, destituídos de auto conhecimento embora esclarecidos intelectualmente. Um soco na boca do estomago daqueles que acreditam que se não falamos sobre determinada coisa ela não existe.
O casal de que trata o drama personifica os atributos não interrogados de uma vida pequeno burguesa, onde não se vislumbra nada além de segurança material. A ilusão de que se trata de um casamento perfeito é de imediato esfacelada pela similaridade que alguns traços guardam com o inferno – palavra que mais se repete ao longo do texto.
Em face à primeira adversidade emerge uma ferida não cicatrizada, no entanto, ao menor sinal de que algo não está bem, as desventuras são entulhadas fora do alcance dos olhos. A arte de varrer para baixo do tapete se mostra insatisfatória quando o marido se apaixona por outra e movido pela ânsia vital é tomado pela brutalidade e pelo egoísmo eufórico. Desamparada, Marianne sucumbe. Mas o tempo se arrasta e à medida que a jovem se recupera, John se aproxima cada vez mais do inferno. Passam a protagonizar então um processo gradual de desumanização, onde destilam a aversão mútua e contida, com o intuito de se destruírem. E conseguem. Renasce algo novo desse aniquilamento, uma espécie de realfabetização de si mesmos, embora ainda haja desorientação e relações atarracadas. A diferença é que agora vivem num mundo de verdades e realidades escancaradas. Mas não há final feliz.
Depois de Vinícius comecei a vasculhar Picasso, outra vida delineada sob a égide da paixão. Ferino apreciador da sensualidade feminina, Pablito representa para mim a sutileza do instante que repousa inaudível entre intensidade e violência. Homem enérgico, possessivo, ciumento, dotado de virilidade e força, as biografias de suas mulheres musas relatam o transtorno que escoltava o término dos relacionamentos, evidenciando o vazio que assolava as vidas outrora irrigadas pela magnitude da presença cortante do pintor espanhol. Sobre Fernande Olivier, uma das precursoras, é sabido que o artista apesar de vangloriar-se publicamente de sua beleza, trancava-a em casa quando se ausentava chegando inclusive a sugerir a possibilidade de abastecê-la completamente a fim de evitar qualquer espécie de exposição e cobiça. Marie Thérèse Walter enforca-se após a morte de Picasso. O que mais me choca, entretanto, é a impassibilidade e crueldade com que se desenhavam tais relações, essas mulheres a despeito de representarem muitas vezes o embrião de seus instantes de efervescência, influenciando inclusive a transição entre uma fase e outra, eram apreendidas enquanto personagens, bonecas de onde não jorra seiva alguma.
Livre e munida da esperança da possibilidade de exorcizar meus demônios, estou me preparando internamente para registrar uma certa história. Reviver Picasso é, de longe, um ensaio, uma dose saudável de esquizofrenia protagonizada nos bastidores de mim. Amém.
"Ter uma filosofia é saber amar. E saber onde colocar o amor. Porque não podemos colocá-lo em qualquer lugar; temos que ser como um padre dizendo sim, meu filho ou sim, minha filha ou que deus o abençoe mas as pessoas não vivem assim. Vivem com raiva, e hostilidade, problemas, falta de dinheiro, você sabe, tremendas decepções na vida. Então, o que precisam é de uma filosofia. Acho que todo mundo precisa saber onde e como amar me apaixonar para que eu possa viver. Viver com certo grau de paz. Por isso sinto a necessidade dos personagens analisarem o amor. Que discutam, matem, destruam o amor; que se magoem, que façam todas essas coisas nessa guerra, nessa polêmica de texto e de imagens, bem, que é a vida. O resto realmente não me interessa. Pode interessar a outras pessoas, mas eu só penso numa coisa. É tudo o que me interessa: o amor." Cassavetes
, então ele enterrou a cabeça nos meus seios e pensei bye bye blackbird em breve você estará prostrado diante de edifícios e arranha céus respirando a fuligem dos automóveis e terá que arquitetar estrelas e luas e inventar um diálogo com os astros e uma certa ternura um abraçar a si mesmo em meio à multidão que se amontoa e depois segue dispersa e explode em solidão sem castelo sem espada sem glória mas tudo bem eu suspirava aliviada nos olhos dele cabem todos os sóis casamos quatro ou cinco vezes nas duas últimas semanas nosso altar eram garrafas de vinho que esvaziávamos pelas madrugadas estávamos quase sempre bêbados e obscecados e colorindo versos surdos depois eu seguia distante pisando no cascalho assoviando sem som melodias quebradas no ar e quando o dia despontava nos encontrávamos em estado de pureza sóbrios e terrenos eu pensava puta merda cadê toda aquela excitação mas ele beijava a mancha borrada no meu pescoço e sorria infantil rasgando toda desesperança e isso me fazia pensar que loucura a mesma dificuldade em erotizar a perfeição e todas aquelas frases que ainda não foram lapidadas latejando na memória mesmo sabendo que ele partiria logo fizemos amor pouquíssimas vezes fizemos amor o tempo todo falávamos e cantávamos sem parar as vezes sobre rostos e memórias carcomidas pelo tempo enquanto nos lembrávamos de um tempo futuro onde o desejo sexual viraria poeira fina e mansa e lenta e eu tentava imaginar a erosão e a carne gasta e não eu não me chateava a gente não se lamentava eu sorria por dentro por perceber que continuaríamos sendo o objeto de referência do outro temos tantas eternidades e fulingens em comum pousadas em claves de sol benditas sejam tuas ideias socialistas malucas não me arrependo de ter deixado tudo a antítese do amor é a ferocidade que surge do ciúme patológico de hera e não quero mais o eterno conflito entre agressividade e dedicação quero paz e silêncios e camisolas vermelhas e repouso nos braços do amor ah ele é bastante magro e músico em busca do endereço perdido em todos os lugares está descobrindo o tesão de por os pés na estrada não ligo ele não faz por dinheiro vaidade ou glória as vezes sai vestido de azul tão leve tão pouco com sua flanela xadrez a mesma daquela tarde quente na varanda da minha casa não sei como onde quando teremos nossos filhos ele gosta de Beatriz faz questão de escolher o nome da menina pela primeira vez eu não me importo cerro os olhos e permito que isso escorra devo estar arrebatada por um sentimento que desconheço e cortinas tecidas a mão não quero controlar nada fomos postos para fora a ilusão de todo casamento é a crença de que aquele será o objeto final de nossa escolha sublimar talvez diga respeito a encontrar motivos para ficarmos juntos algo parecido com descobrir onde colocar o outro dentro do nosso desejo não sei por alguma razão eu acredito na gente ele disse que faria qualquer coisa por mim jamais pediria para ele ficar eu quis tanto subir naquele ônibus ontem e inventar outra vida em albergues desconhecidos naquela cidade cinza e insone acreditando bobamente que seria meu último espasmo mas sabemos que não e isso não importa importa o sangue e a carne e a imaginação ele saiu tão lindo tão vasto tão homem com o barbante que amarramos nos dedos até sempre blackbird nos dissemos várias vezes e as locomotivas amarelas atravessavam os telhados num último relance ontem transamos tão insanos e agonizantes ouvindo miles davis confessamos nossa espera revirada choramos aliviados agradecemos as brechas porque agora zeus não precisará mais se transformar em várias coisas só em chuva para conquistar e fecundar danae chova sua seiva em minha ciranda esquiva e lenta meu amor eu dizia sem fazer alarde pouse teus últimos anos nessa janela sem grades somos a extensão de algum filme do woody concluímos nos encarando através do espelho do banheiro sabe aquele comecinho de igual a tudo na vida isso a cena dos dois casais no restaurante e depois a loja de discos e a billie holiday esquece o desfecho trágico dizem que toda relação é narcisista que buscamos no outro a beleza que não temos não acredito nisso não mais a energia criativa emerge da necessidade do outro uma vontade sem vértice de fazer o que ele não me pediu por descaso ou bondade largar tudo aqui e passar a vida quebrando copos tomando vinho barato cantando aquele choro bandido:
Ginsberg para celebrar a espontaneidade, a vida trilhada e transpirada em ritmo de jazz, aqueles que estão sempre a ponto de ir embora, o desimpedimento da consciência, a libertação dos impulsos vitais, a arte engajada, a velocidade e o amor que se canta sem desviar os olhos...
Canção Allen Ginsberg
O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação
o peso
o peso que carregamos
é o amor.
Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano - sai para fora do coração
ardendo de pureza - pois o fardo da vida
é o amor,
mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.
Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor -
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
- não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:
o peso é demasiado - deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso. Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho -
sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.
Assombrado pela necessidade e pela fome, Akhtar Muhammad primeiro vendeu alguns de seus animais. Aí, enquanto os meses iam passando, trocou os tapetes da família, os utensílios de metal e até mesmo as toras de madeira que sustentavam o teto da cabana que o abriga com a larga prole.
Mas o dinheiro não dava. A fome sempre reaparecia. Finalmente, seis semanas atrás, Muhammad fez algo que se tornou infelizmente digno de nota no país. Ele levou 2 de seus 10 filhos para o bazar da cidade mais próxima e os trocou por sacos de trigo
(BARRY BEARAK, Pai afegão vende filhos para comprar comida. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 de março de 2002; transcrito do The New York Times.)
Questionado, o pai confessou sentir saudades de seus filhos, mas lamentou não existir alternativa diante da incapacidade de alimentá-los. Para saciar a fome as pessoas se desfazem de tudo: utensílios, animais, filhos... A noticia é antiga, no entanto, alude a uma realidade que, longe de ser discreta, desfila seus modos rasgados vestidos de despudor: enquanto alguns vivem na mais exacerbada regalia, outros morrem de fome devido às situações subumanas a que são submetidos. Em Capitalismo, Violência e Terrorismo, Octavio Ianniatenta para a necessidade de reconhecermos a relação entre as situações de carência e violência. Tema banalizado, mas atualíssimo.
O autor concebe a sociedade burguesa enquanto uma fabrica onde são processadas pessoas, concepções de vida e modos de ser, mas também revoltas, terrorismo e revolução. As guerras sociais são latentes e permanentes. A distribuição díspar da riqueza econômica e cultural é a força motriz dos enxames de violência com os quais os meios de comunicação nos bombardeiam diariamente. As elites governantes e as classes dominantes até se empenham em equacionar, desde que seja mantida a ordem social, econômica e política.
Elvira Lobato, num artigo publicado na Folha de São Paulo datado de 2002 e intitulado “O Brasil vive guerra social”, vale-se de uma comparação feita por um relator da ONU sobre o direito à alimentação, que nos remete a uma reflexão interessante: em alguns paises africanos a fome é sintoma da escassez inerente à própria natureza onde não se vislumbra nada além de areia e rocha. No Brasil, um terço da população é açoitada pela subnutrição, e isso é inadmissível quando nos deparamos com terra fértil, riqueza material e clima tropical. No nosso caso, a fome não é uma fatalidade, responsabilidade da natureza austera, mas alvitre de uma ordem social essencial e completamente injusta: um genocídio. “Quem morre de fome no Brasil é assassinado. Há uma guerra de classes: são 40 mil assassinatos por ano, de acordo com as estatísticas do Ministério da Justiça. Há uma guerra social aqui. Para a ONU, 15 mil mortos por ano são um indicador de guerra”. E são dessas desigualdades que se nutrem as mais variadas formas de intolerância, entre elas as xenofobias, os etnicismos e racismos.
Entre as causas, o autor destaca o ciclo da globalização do capitalismo, responsável por colocar economia nacional prostrada diante da econômica global, gerando assim um vácuo entre Estado e sociedade civil, a qual se encontra apartada da capacidade de gerir as políticas governamentais, situação que Ianni chama de “despolitização das questões cruciais da vida do individuo”. No âmbito do divorcio entre indivíduo e Estado, o último se volta quase prioritariamente para decisões externas, negligenciando a sociedade civil a fim de conformar-se com os aparelhos das elites dominantes. Panorama esse que fomenta, entre outras coisas, um declínio nas relações com o outro e consigo, acentuando ainda mais o individualismo e a solidão. Para essas elites a sociedade nacional é apreendida enquanto mero espaço de negociações e transações. E assim, assistimos e vivenciamos diariamente, a diminuição do ser humano ao estatuto de coisa.
Inspirado em: IANNI, Octavio. Capitalismo, violência e terrorismo. São Paulo: Civilização Brasileira, 2004.
Castores constroem suas represas, me disse hoje Rubem Alves, atentando para o silêncio com que no universo dos animais os ensinamentos se perpetuam, alforriados de vocábulos e sábios. Sua natureza petrificada, encerrada em si mesma e perfeita é incompatível com as experiências de liberdade e originalidade. No entanto, diante do homem e de sua inerente recusa em refletir o passado a fim de tornar-se um artífice de mundos, a genética silencia. Templos, harpas, poemas, tambores, sepultura para os mortos. A falta, a dor da ausência, o suicídio que coloca em cheque o imperativo de sobrevivência. Para o autor, a cultura só é possível no momento em que o corpo cala.
Rubem ressalta ainda que muito embora a tradição filosófica tenha tentado perpetuar a certeza de que somos seres racionais, a cultura sugere uma outra possibilidade: o homem é um ser de desejo. Este emerge enquanto sintoma da insuficiência, da escassez, da ausência. “A saudade só aparece na distancia. A fome só passa a existir quando o homem é privado do pão. O desejo pertence aos seres que se sentem despojados, que não encontram prazer naquilo que o espaço e o tempo lhes oferecem”. Estudos realizados por psicanalistas indicam que a cultura resulta do imperativo humano de cunhar os objetos que deseja, nosso ego tentaria inconscientemente encontrar um mundo em que fosse amado, porém, diante da impotência em localizá-lo, cria tais objetos de amor por intermédio da imaginação e da magia. “Juntam-se assim o amor, o desejo, a imaginação, as mãos e os símbolos para criar um mundo que faça sentido”.
Segundo o autor, cantamos e celebramos esse desejo ainda desencontrado da realidade em preces, rituais, poemas, oferendas. “Onde a cultura fracassa surgem os símbolos, testemunhas das coisas ainda ausentes, saudade do que não nasceu”. É neste terreno que emerge a religião: “a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza”. Camus notou que são parcos os casos de homens que se sacrificam em nome de verdades cientificas, em função da sua frieza e inércia. Do lado oposto estão os símbolos que nos fazem pestanejar, estremecer, estigma da comunhão do homem com o sagrado. Um mundo de imaginação e fantasia, que se debruça sobre o invisível e sobre fatos que ultrapassam nossas experiências prosaicas – na linguagem zen budista seria algo equivalente ao satori: um terceiro olho se abre e diante da iluminação e passa a vislumbrar coisas que os demais não podem contemplar. “O amor se dirige para coisas que ainda não nasceram, ausentes. Vive do desejo e da espera”.
Num mundo que esbraveja a necessidade da subordinação irrestrita à observação, a entrega à embriaguez dos desejos se torna inconcebível. “Os símbolos respondem a um outro tipo de necessidade, tão poderosa quanto à do sexo e da fome: a necessidade de viver num mundo que faça sentido”. Camus levanta a seriedade que permeia a questão filosófica do suicídio, uma vez que esse diz respeito ao sentido - ou ausência do mesmo, da existência. Questões que encontram serias limitações quando inseridas na esfera puramente material. Pois, é inegável, trata-se de um problema simbólico. “A trágica conclusão das salas de tortura diz respeito ao fato de não ser a dor que desintegra a personalidade, mas a dissolução dos esquemas de sentido”.
Inspirado em: ALVES, Rubem. “Símbolos da Ausência”. In: O que é religião. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. 14ª edição.
Uma balada de encontro e despedida, em memória das madrugadas regadas a jazz e vinho barato, dos amores arrematados em silêncio, do falar baixo, do desejo de pés de lã. Das coisas que caminham breves, brandas, brancas, macias, mansas, leves...
foi a última obra de Sartre a que tive acesso, muitas coisas me levaram a escrever sobre ela nesse momento, mas o essêncial talvez tenha sido o fato de elucidar uma verdade tão escancarada quanto dolorosa: o elemento que permeia a relação entre consciências é o conflito. O filósofo francês, um dos expoentes do existencialismo, apoiou-se sobre a certeza de que a existência está intimamente atrelada ao pensamento que o outro faz de si. Enquanto seres pensantes e pensados, estamos condenados ao privilégio angustiante da liberdade de escolha, isso faz suscitar um sentimento de responsabilidade e angústia. Os personagens de que trata o drama foram condenados ao inferno por abdicarem da liberdade que lhes facultava sua condição humana, lançando mão, cada um a seu modo, de uma forma de alienação. Condenados então à tolerância mútua descobrem o inferno essêncial: uma consciência não pode furtar-se a enfrentar a outra que a denuncia.
O drama data de 1944 e é ambientado em um único cenário com pouquíssimas personagens. Garcin, homem letrado, abandonou o serviço militar sob pretexto pacifista, foi preso e executado. O típico covarde que se refugia na apatia para não enfrentar a verdade. Em vida, torturava a esposa a quem fora incapaz de amar; em morte, tenta destruir Estelle ao sentir-se dependente de seu afeto. Inês, uma lésbica funcionaria dos correios, não lança mão de álibis para justificar seu ódio e sadismo. No inferno, sente certa atração por Estelle, por quem é desprezada. Por fim, Estelle, burguesa que ascendeu socialmente através do casamento e matou a filha, fruto de seu caso com um amante, em nome do conforte e da vaidade. Concebe o infanticídio enquanto obra do destino, busca na paixão uma espécie de entorpecimento a fim de escapar a realidade. Volta-se para Garcin ansiando pela evasão, este se recusa a amá-la na presença de Inês. Tomada pelo ódio planeja assassiná-la e depois se suicidar, mas os mortos só morrem uma vez.
O inferno onde a trama se desenrola é decorado com apenas com três poltronas e uma estátua de bronze sobre a lareira. Os mortos permanecem enclausurados nesse espaço e sua condenação é a vida em comum – as coisas se desenrolam de tal maneira que a convivência se torna insuportável. São carrascos de si mesmos e dos outros nesse inferno particular, uma vez que, incapazes de expiar suas falhas descobrem o insuportável de sua imagem nos olhos do outro.
Seguindo a vertente humanista do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, Jurandir Malerba em um dos capítulos de sua tese de doutorado discute a formação do Estado Nacional brasileiro que, como é sabido, teve como faísca a guerra pela hegemonia política na Europa entre a França de Napoleão e a Inglaterra, conferindo cara às personagens de que trata. O autor fala sobre a necessidade de saber quem eram os nobres brasileiros e o que pensavam, uma vez que, a concepção de vida dessas pessoas é que demandaria como Estado seria montado por aqui. Resgatei esse assunto, pois, no que diz respeito aos vícios e vicissitudes tão entranhados em nós desde tempos imemoriais, o autor levanta algumas questões que merecem ser pontuadas.
Lançando mão de uma das tendências do romancismo, o título foi elaborado através de uma metafóra interessante: O Cetro e a Bolsa. Os substantivos se referem, respectivamente, ao poder político e ao prestigio engendrado pelo capital, encerrado assim a idéia central do capítulo em questão: o Brasil foi erigido através da fusão entre os que detinham a pompa (cetro) e aqueles que possuiam o dinheiro (bolsa).
É importante ressaltar que D. João era herdadeiro da tradição absolutista, segundo a qual o rei, ungido por Deus, centraliza o poder e é concebido enquanto a alma do reino. Havia também no inconsciente coletivo a certeza de que o pai, personificado pelo rei, deveria acolher, fato esse que justifica, entre outras coisas, os rituais de beija mão, abertura dos palácios e reclamações diretas. Nós somos filhos dessa tradição absolutista, baseada no catolicismo e com forte ênfase na hierarquia e isso explica o arcabouço de costumes segundo os quais nos orientamos. Não ocasionalmente, na sociedade norte americana construída sob a égide do protestantismo, este caracterizado por fomentar a concepção de indivíduo e, conseqüentemente, a impessoalidade, há a separação absoluta entre público e privado. O povo brasileiro, ao contrário, é autoritário, personalista e respira politicamente essa cultura através de abraços e programas como o Bolsa Família.
Malerba atenta ainda para a necessidade de (re)conhecer a cultura e o caráter da monarquia lusa para entender como as coisas se desenharam por aqui. Muito se fala que para sustentar sua corte D. João adotou uma política exagerada de distribuição de títulos em função de satisfazer seus interesses, empreitada essa bastante recorrente em Portugal. Segundo o autor o que houve com a chegada da família real foi um exagero, não uma invenção. Contrariando a historiografia oficial, no que diz respeito à construção do Estado Nacional brasileiro, enfatiza que quem se uniu a corte lusitana não foram os aristocratas, mas os comerciantes de escravos, chamados homens de grosso trato. E foram esses os homens que viraram barões. A hipótese que talvez justifique a fusão que não aconteceu entre o rei e os latifundiários diz respeito ao fato de que os últimos já possuíam terras e ocupavam os principais cargos públicos, assim, a presença da corte teria gerado um certo desconforto e sensação de desprestígio.
O Estado Nacional brasileiro trouxe em seu bojo e alicerce a aliança entre parasitas migrados e pessoas enriquecidas com o comércio de escravos e outras atividades insalubres, que ansiavam por ascensão política. A chegada do rei possibilitou a essa gente a oportunidade de adquirir prestígio. Por outro lado, aqueles que monopolizavam o cetro e careciam da bolsa... O pilar do nosso Estado? Interesse. Pessoas ávidas por se aproximarem do poder a fim de ascender e satisfazer aspirações próprias. Parece familiar?
Sem mais.
Inspirado em: MALERBA, J. A Corte no exílio e poder no Brasil às vésperas da Independência.
''As pessoas voltam a ser bebês quando ficam muito velhas?''
A pergunta foi feita por um menino suiço de cinco anos.
Todos os dias, guiados pela deusa do fogo, viajantes rasgam o véu e cruzam o limiar em busca do altar sagrado e da ancestralidade. Não param para olhar para trás pois alcançaram o mistério da morte: nada morre.
Talvez o mundo tenha desaprendido a vigília. Quisera eu que me tivessem preparado um rico jantar - lembranças. Saudades não. Quem sabe um cajado para tornar mais fácil e caminhada através das montanhas, o embate com o urso. Encontro, fusão.